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Archive for the ‘História da Educação’ Category



Amanhã, ocorre o 50.º aniversário da morte de João de Barros, pedagogo republicano, poeta e pioneiro da aproximação luso-brasileira.

Nascido na Figueira da Foz em 1881, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Cedo enveredou pela carreira docente, sendo professor de Português e Francês em vários liceus: Coimbra, Porto e Lisboa.

Distinguiu-se, sobretudo, como pedagogo associado ao movimento da Escola Nova e às reformas republicanas da Educação.

Afastado da vida política pela Ditadura, instituída na sequência do golpe militar de 1926, e pelo Estado Novo, ardilmente edificado por Oliveira Salazar, manteve-se, no entanto, toda a vida fiel aos princípios republicanos e democráticos.

Participou em várias manifestações da Oposição. Em 1945, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática. Apoiou as candidaturas à Presidência da República de Norton de Matos e Humberto Delgado. A partir de 1952, no Diário de Lisboa, tanto quanto lhe foi permitido pela Censura, continuou a sua doutrinação pedagógica em prol da educação como factor de progresso social e civilizacional.

Morreu em Lisboa a 25 de Outubro de 1960. O Diário de Notícias da Madeira noticiou o seu falecimento na primeira página, apresentando breve resenha da sua vida e obra e exaltando a sua qualidade de «grande democrata».

 

Um homem novo

Em 1907, como bolseiro, João de Barros, acompanhado por João de Deus Ramos, empreendeu, durante quase um ano, uma viagem de estudo com fins pedagógicos a Espanha, França, Inglaterra e Bélgica. A visita a reputados estabelecimentos de diversos graus de ensino permitiu-lhe conhecer experiências pedagógicas inovadoras. De salientar a sua presença na Institución Libre de Enseñanza, onde leccionava Alice Pestana (1860-1929), de ascendência madeirense, com quem manteve relações de amizade.

Do relatório desta missão nasceu o livro A Escola e o Futuro: notas sobre Educação, publicado em 1908. Nesta obra, deu conta das impressões e ensinamentos da viagem pedagógica que realizou. Igualmente, desenvolveu a ideia de futuro, com novos homens, novos cidadãos: uma humanidade mais perfeita, «capaz de viver no futuro, sem o peso dos nossos preconceitos, dos nossos sentimentos, das nossas ideias».

O educador, por conseguinte, não deveria «dar ao Futuro almas do passado, almas como as nossas, vivendo do que já viveu, tremendo do que já não existe: – mas energias livres, indomadas, virgens – e aptas a tornar mais belas, e mais intensas e mais complexas as ideias, as lutas, as ambições desse Futuro, que há-de ser o seu presente.»

João de Barros preconizava uma educação integral – uma educação nova – que possibilitasse o desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades e todas as energias da criança.

Condenava o jesuitismo, que ainda dominava o ensino, originando meninos prodígios que depois se transformavam em «homens sem inteligência, sem iniciativa, sem amor ao estudo e ao trabalho».

Defendia, portanto, a escola laica com uma educação capaz de criar um homem novo, com bom desenvolvimento físico e moral (moral laica), com competências para o exercício da cidadania, orientada pelos princípios republicanos da Liberdade, Igualdade e Solidariedade.

Para João de Barros, o homem novo era o cidadão republicano que havia beneficiado da educação integral: um cidadão trabalhador, feliz, patriota, de carácter progressista, bom, solidário, altruísta, ou seja, dotado de um conjunto de elevadas virtudes, que a utopia do seu ideário pedagógico comportava.

Em 1909, publicou o folheto João de Deus, o único educador nacional que apresentara como comunicação no II Congresso Pedagógico, promovido pela Liga Nacional de Instrução em Abril desse ano. Neste estudo, sustentava que a Cartilha Maternal constituía uma base para a remodelação geral do sistema de ensino, acentuando a forte relação entre o professor e o método: «se não há bons métodos sem bons professores, não há também bons professores sem métodos bons».

Estes dois trabalhos colocaram João de Barros «no âmago da batalha republicana pela escola», segundo a feliz expressão do saudoso Professor Rogério Fernandes (1933-2010).

 

João de Barros e a República

Dez dias depois da implantação da República em Portugal, João de Barros foi chamado a integrar uma comissão que haveria de elaborar o Regulamento para a instrução militar preparatória. Esta seria uma das várias missões, no domínio da Educação, que desempenhou em diferentes governos da I República, desde chefe de repartição, a secretário-geral ou director-geral do Ministério da Instrução Pública.  

Contudo, o seu nome e o de João de Deus Ramos ficaram, sobretudo, ligados à Reforma da Instrução Primária de 29 de Março de 1911, arquitectada de forma ideal, mas longe de ser cumprida.

No Preâmbulo deste diploma, pode ler-se:

Educar uma sociedade é fazê-la progredir, torná-la um conjunto harmónico e conjugado das forças individuais, por seu turno desenvolvidas em toda a plenitude. E só se pode fazer progredir e desenvolver uma sociedade fazendo com que a acção contínua, incessante e persistente da educação, atinja o ser humano sob o tríplice aspecto: físico, intelectual e moral.

Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria-prima de todas as pátrias e, por mais alto que se afirme a sua consciência colectiva, Portugal só pode ser forte e altivo no dia em que, por todos os pontos do seu território, pulule uma colmeia humana, laboriosa e pacífica, no equilíbrio conjugado da força dos seus músculos, da seiva do seu cérebro e dos preceitos da sua moral.

Apesar de João de Barros e João de Deus Ramos terem acusado o ministro António José de Almeida de publicar no Diário do Governo um decreto diferente da sua proposta, e que havia sido já discutida e aceite, verdade é que, na sua essência, este preâmbulo tal como as disposições legais revelam o pensamento dos seus autores, no que diz respeito à instrução primária.

O Decreto de Março de 1911 regulava ainda os ensinos infantil e normal. Para o ensino primário, foram definidos três escalões, sendo o elementar, com a duração de três anos e sujeito a exame final, obrigatório e gratuito para ambos os sexos, o que constitui uma medida notável na implementação da instrução pública no nosso país.

Na bibliografia do nosso autor, é de salientar A Nacionalização do Ensino (1911), A República e a Escola (1914), Educação Republicana (1916) e Educação e Democracia (1916), obras fundamentais para a compreensão da pedagogia democrática e republicana. Mas igualmente, há que ter em conta a sua colaboração na revista A Escola Nova, da qual foi redactor, e Atlântida, que fundou com João do Rio (Paulo Barreto), bem como a sua ligação ao movimento Renascença Portuguesa (jornal Vida Portuguesa e revista A Águia) e ao grupo da Seara Nova.

De acordo com João de Barros, a República tomou a educação e a instrução como «duas bandeiras de batalha», porque tinha consciência de que «sem instruir as novas gerações, dentro dum critério republicano, que seja ao mesmo tempo um critério pedagógico, ninguém poderá garantir o futuro da República e da Pátria.»

 

Para as crianças e o povo

Finalmente, e no âmbito das suas preocupações pedagógicas, em especial a promoção da leitura e o combate ao analfabetismo, é justo mencionar o empenho de João de Barros na divulgação de obras clássicas, em adaptações para a infância, a juventude e o povo, como Os Lusíadas, A Odisseia, A Ilíada e A Eneida, com sucessivas edições desde a década de 1930 até à actualidade. Com idênticas preocupações, publicou também uma adaptação livre das Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift.

 

Diário de Notícias, Revista Mais,

Funchal, 24-30 de Outubro de 2010, pp. 20-21 

 

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Cristóvão Azevedo é a personagem principal do romance Porque me lembrei dos cisnes, de Irene Lucília Andrade, vindo a lume em 2000. Personagem revelada ao leitor com parcimónia, à medida que a narrativa se desenvolve, o professor Cristóvão conquista-nos, não, particularmente, pelo que, em termos profissionais, representa ou preconiza, mas pela força do seu carácter, pelos dilemas com que se confronta, pelo oculto «casulo de compromissos e ansiedades» (p. 13) que progressivamente se vai rompendo, enfim, pela sua densidade psicológica. 

Não sendo propriamente um alter ego da escritora, a personagem beneficia, porém, da experiência docente de quem a criou. Afigura-se-nos ainda que alguns desencantos, acerca do sistema de ensino e até do mundo, sejam partilhados por ambos [1].

A autora dedica este livro às espécies ameaçadas, incluindo aquela a que pertence. Das razões profundas desta dedicatória, saberá a escritora. Contudo, o leitor atento, por certo, concordará que, na mesma, também se inclui o protagonista.

Na verdade, Cristóvão Azevedo refugiou-se na ilha do Porto Santo para escrever um livro (poema longo, conto ou romance – não estava ainda seguro do resultado, p. 93), perante a ameaça de, profissionalmente, ser obrigado a uma actuação que a sua consciência repudiava, após trinta anos de serviço docente. Sucessivas reformas educativas perturbaram-no. O trabalho diário com os alunos já não o entusiasmava. O desinteresse e a indisciplina constituíam grave preocupação. A imagem e a autoridade do professor estavam altamente desvalorizadas.

«As mudanças aconteciam a um ritmo que se sobrepunha às capacidades estruturais da escola e a falibilidade dos processos experimentados era rapidamente comprovada, os manuais apinhados de propostas controversas, onde surgiam completamente baralhados por critérios desconexos, conteúdos interdisciplinares, tudo de tal modo denso, tão saturado, tão inconvincente que ele não sentia prazer em seleccionar objectivos, por já não acreditar neles. Desejava veementemente deixar o seu ofício de uma vida inteira.» (p. 140)

Não só com a sua profissão se sentia desiludido. Logo, numa primeira carta, confessou à mulher que, irreversivelmente, se aborreceu com «boa parte do mundo», invocando depois o direito de se suprimir à «voragem das imagens», que lhe impunham, e de legítima defesa contra quem violentar o seu cansaço, ainda que sob o risco de ser acusado de «místico ou obscuro» (pp. 9-10).

Irene Lucília não nos revela a área disciplinar do professor Cristóvão. Pelo que se pode deduzir, seria a Língua Portuguesa e a Educação Visual, matérias que, no nosso sistema de ensino, não andam nas mãos do mesmo professor, mas que, sem dúvida, são do interesse da escritora. Há uma referência a sintagmas, conjuntos, projectos, estruturas, animais e flores que ilustra a simbiose das duas disciplinas (p. 79). O leitor fica ainda a saber que Cristóvão, na sua juventude, desejou ser fotógrafo ou cineasta e fez formação em fotografia, heliogravura e cinema no formato super-8 (pp. 91-92). Este gosto pela Arte levou-o a matricular-se na Academia Real de Belas Artes, quando vivia na Bélgica, para onde emigrou a fim de escapar ao serviço militar e à guerra colonial (p. 39).

Cristóvão Azevedo via a arte como «estruturante do pensamento» que acentuava a «consciência duma ética da conduta humana» (p. 64). A arte identificava-se com «um princípio regulador de atitudes, criador de formas iminentes de compromisso com o valor humano na sua forma global.» (p. 139). A arte possibilitava, ao artista, «uma solidão irradiante, uma tranquila doçura» (p. 39).

Este professor revelava particular afecto pela Natureza e numa das cartas a Maria Ester recordou uma das suas aulas no jardim, para observar as plantas e registar as singularidades de cada espécie quanto à forma, estrutura, número e cor (p. 97), metodologia muito característica da Educação Visual.

«Cristóvão era um homem silencioso, tímido, vibrátil, comprometido por natureza com tudo o que o rodeava, tudo lhe valia uma reflexão, nada acontecia que não fosse por ele questionado, capaz de amar um penhasco, uma erva, um recanto…». (pp. 55-56)

Esse generoso enternecimento pela Natureza revela-se bem quando decidiu alugar um carro por um dia, para dar uma volta pelo interior da ilha do Porto Santo, porque «as paisagens lavadas refrescavam-lhe os olhos e o fundo do cérebro.» (p. 113). Cristóvão precisava de laços próximos. O apelo telúrico poderia contribuir para a sua reabilitação psíquica:

«Cristóvão de Azevedo enchia os olhos e o desejo, queria criar com aquela terra um compromisso qualquer. Não sabia bem se a amava ou viria a amá-la, mas havia um frémito que lhe percorria o corpo, uma sensação física muito próxima dum estado erótico que o prendia à voluptuosidade das espessas dunas e ao hálito quente que se evolava das vinhas rasteiras expostas ao sol.» (p. 34)

Intimamente, a personagem principal assume-se como um poeta que, para assegurar a sobrevivência, ingressou na carreira docente. Todavia, desiludido com a sua actividade profissional e a poucos anos da aposentação, admitia que se sentiria bem caso tivesse sido jardineiro, músico, pastor, hortelão ou filósofo, porque, afinal, poderia sempre, em qualquer uma destas profissões, ser poeta (pp. 140-141).

Era um professor dedicado, sonhador, inconformista, com ideias diferentes para a Escola e para o mundo que, mentalmente, recusava a massificação ou a clonagem (p. 62). Bastante elucidativo deste seu ponto de vista é a descrição que o próprio fez do seu comportamento numa das actividades escolares.

No «Dia Mundial da Árvore», escreveu Cristóvão, as crianças saíram da escola «contidas e submissas em seus rebanhos formais, badalando por dentro uma frase que ainda não entendiam muito bem» (p. 84). Por solidariedade com os seus alunos, assistia à plantação programada e às demais actividades educativas que decorriam num «vale ondulado dentro da acidentada cidade, com vertentes férteis e algumas quintas ao fundo» (p. 85). Sem o expressar de viva voz, criticava o ritual que observava, antecipando, no seu íntimo, o cenário dos meninos «fabricados em série» para a civilização que se anunciava (p. 87). Neste confronto interior, fica bem claro a sua predilecção pelo ensino individualizado, preconizado, por exemplo, por Henri Bouchet e Robert Dottrens [2].

«Através do encontro pretendia-se unificar a força que havia de ter o acto educativo na formação das consciências. Mas as dúvidas persistiam. A multidão não é uma força inteligente. Move-se pelo acto mecânico do estímulo que uniformiza o gesto e espartilha o comportamento. As crianças precisam de ser individualizadas para que dentro delas se formem pessoas diferenciadas e criativas, o que tornará mais proeminente e válida a espécie humana.» (p. 85)

Nesta linha de pensamento, Cristóvão manifestava também posição crítica em relação à informatização. Admitia iniciar-se na aprendizagem da utilização do computador, mas resistia à palavra de ordem – informatizar, preservando-se da massificação, recusando-se à obrigação de seguir o rebanho (p. 89). Opunha-se à imposição da máquina com critério obrigatório (p. 93), porque, acerrimamente, defendia o pluralismo (p. 92).

«Havia uma mão funesta, oculta, algures, a ordenar uma perfídia incontrolável que era esta de nos arrastar a todos para a unicidade sem ter em conta as diferenças de cada um e a transculturalidade.» (p. 93)

Não lhe agradava, por conseguinte, a apologia desmedida das bibliotecas digitais. Rejeitava o desprezo pelo livro em suporte de papel, nem tão-pouco aceitava a desvalorização das bibliotecas tradicionais (p. 92).

Igualmente, manifestava algumas reservas quanto aos computadores individuais, designadamente como novo processo de combate à ignorância. Nas conversas que mantinha com um seu colega de profissão, Rui Morais, procurava certificar-se da qualidade da informação disponível (p. 88).

Não chegando talvez a ser o protótipo de um determinado professor, Cristóvão poderá, todavia, testemunhar a decepção de muitos profissionais da educação, na recta final da carreira, pelo rumo da Escola em Portugal, ferida por reformas mal ensaiadas e mal avaliadas, alvo de medidas inadequadas de quem desconhece a realidade do país, repleta de indisciplina e insucesso, e também a inadaptação de alguns face às mudanças operadas e, sobretudo, o descontentamento pelo inaudito desprestígio da profissão.

No entanto, Cristóvão não se evidencia somente como professor. A decisão de se afastar da profissão, da mulher e do meio que habitualmente frequentava, optando pelo refúgio na ilha do Porto Santo constitui também investimento pessoal: a busca do rejuvenescimento pela recusa do tédio e da opressão (p. 167). É ainda manifestação de cidadania, afirmação da liberdade do Homem e prova de fé num outro horizonte. 

 
 
NOTAS
 
(1) Em conversa com Irene Lucília Andrade, no dia 3 de Abril de 2009, a escritora disse-nos que a origem desta personagem e do próprio romance está numa colaboração com o Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), no suplemento Educação, pelos finais dos anos oitenta do século XX. Os dois textos, que então publicou no JL, surgem a pp. 77-83 e 83-87 de Porque me lembrei dos cisnes, Leiria, Editorial Diferença, 2000. 

(2) H. Bouchet, L’individualisation de l’enseignement: L’individualité des enfants et son rôle dans l’éducation, Paris, Alcan, 1934; R. Dottrens, O ensino individualizado, Porto, Livraria Civilização, 1973.
 
 

Revista Margem 2, n.º 26, Funchal, 2009, pp. 108-111

 

 

 
 
 

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Para muitas gerações, o nome deste autor é sobejamente conhecido. Embora fossem quatro os autores de Leituras da IV Classe – da minha e de quantas, meu Deus! –, o livro aprovado oficialmente era, na verdade, denominado por Cruz Filipe. Dos outros co-autores – Manuel Subtil, Faria Artur e Gil Mendonça –, ninguém, inexplicavelmente, se lembrava. As ilustrações, da responsabilidade de Eduardo Romero, também não eram mencionadas.

Guardo, zelosamente, exemplares de 1952 (79.ª edição) e de 1962 (126.ª edição) da Livraria Sá da Costa Editora. A 1.ª edição é de 1931.

Este livro de leitura é composto de textos de autores diversos, de quadros históricos, máximas, alguns exercícios, uma breve síntese de regras ortográficas e uma pequena lista de vocabulário.

Alguns autores consagrados da nossa literatura são incluídos na parte final e deles foram esboçados curtos traços biográficos, que acompanham excertos da sua obra. Camões, António Vieira, Manuel Bernardes, Herculano, Garrett, Castilho, Tomás Ribeiro, Camilo, Júlio Dinis, João de Deus, Trindade Coelho, Eça e Augusto Gil são os vultos literários que constam desta antologia. Curiosa e propositadamente, não aparecem autores de livros para crianças ou adolescentes.

No Salazarismo não havia, com efeito, lugar para Maria Lamas, Mestre Aquilino, Sidónio Muralha ou Sophia de Melo Breyner, entre outros. Além da aversão a escritores democratas, o regime preconizava uma educação austera, sem espaço para a fantasia mágica da literatura infantil ou juvenil, como, por exemplo, de A Menina do Mar, editada, pela primeira vez, em 1957.

As máximas, na sua maioria de Castilho, no final de algumas páginas, só por si denotavam os valores dominantes do sistema educativo de então: «Na família, o chefe é o Pai: na escola, o chefe é o Mestre: no Estado, o chefe é o Governo.»; «No barulho ninguém se entende, é por isso que na Revolução ninguém se respeita.»; «Obedece e saberás mandar.»; «Se tu soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida.»; «Mandar não é escravizar: é dirigir. Quanto mais fácil for a obediência, mais suave é o mando.»; «A tua Pátria é a mais linda de todas as Pátrias: merece todos os teus sacrifícios.»

Não é minha intenção analisar o modelo educacional dos anos do consulado salazarista, nestes Passos na Calçada. Mas as Leituras, à moda da época, vieram-me à lembrança, desgraçadamente, nos dias da Festa. Explico já porquê.

Na minha quase obsessão de recolher referências bibliográficas sobre a Madeira, encontrei na Biblioteca Nacional, há cerca de um mês, um opúsculo intitulado A Ilha da Madeira, pérola do oceano. A cidade do Funchal, jóia rotária. Trata-se da publicação da palestra realizada na sessão de 11 de Fevereiro de 1936, no Rotary Club de Lisboa, pelo Prof. Cruz Filipe. Associei-o, de imediato, com as Leituras da IV classe. Uma pesquisa posterior permitiu-me concluir que o co-autor do famigerado livro dos ditados e interrogatórios de interpretação e gramática escrevera sobre a Madeira.

Cruz Filipe (Manteigas, 1890-Lisboa, 1972) era professor da Casa Pia, em Lisboa, especialista no ensino de surdos-mudos, ortofonia e de deficientes mentais.

No fim do ano de 1935, reuniram-se, no Funchal, rotários de Tenerife, Suíça, Riga, Hamburgo, Porto e Lisboa.

O Prof. Cruz Filipe participou neste encontro comemorativo do segundo aniversário do Rotary Club do Funchal, como representante do clube de Lisboa. Chegou ao Funchal no Lima nas vésperas do Natal de 1935.

Na Madeira, os rotários participaram em diversas manifestações de solidariedade social: distribuição de roupas, brinquedos e bolos na creche de Santa Clara e no Lactário; de bengalas a cegos e berços e enxovais a doze crianças pobres.

Além de vários passeios pela ilha, reuniram-se em jantares no Hotel da Bela Vista, no Reid’s Palace e Savoy. Realizou-se também um baile de gala na Quinta Vigia.

A passagem de ano motivou uma festa rotária oferecida por Frederico de Freitas, primeiro presidente do clube funchalense, na sua residência. Vinhos, doces, música, dança e «uma gentileza fidalga» tornaram inesquecíveis essas provas de amabilidade nas primeiras horas de 1936, conforme narra Cruz Filipe em A Ilha da Madeira, pérola do oceano…

Nesta preciosidade bibliográfica, pode-se ainda colher interessante descrição da noite de S. Silvestre, no Funchal.

Depois de deslumbrado pela imensidade de luzes que serpenteavam as encostas, na ansiosa espera pela meia-noite, Cruz Filipe vê assim o espectáculo da passagem do ano:

De repente, um silvo, outro e outro, muitos sem fim e por entre aclamações frenéticas, estonteantes, sentimo-nos presos de tanta maravilha. É meia-noite em ponto.

O fogo-de-artifício começa a enfeitiçar aquele solene momento. Já ninguém pensa nas agruras do ano que morre. Também ninguém se detém a supor o que será o ano que começa, porque é tal o frenesi que de todos se apodera que tudo esquece, para só se admirar, em êxtase, o deslumbramento deste fogo em conjunto, com crateras chispando chamas de ouro, num clarão constante de prata reluzente; foguetes que lá no alto estalejam para deixarem cair chuvas de estrelas multicolores, bouquets formosos e estonteantes; uma infinita maravilha que nos obriga a fixar ora aqui, ora ali, cada vez mais lindos, fogos brilhantes, num entrelaçamento harmonioso, a resplandecerem nas águas quietas da baía, casando-se intensamente com as linhas iluminadas dos oito navios que silvavam na baía, como que anunciar ao mundo este espectáculo de encanto, único, inconfundível – a glória da Pérola do Oceano.

Passado mais de meio século sobre estas palavras, ainda o fim de ano na Madeira continua a ser momento mágico de majestosa e enternecedora glória da ilha.

Este texto de Cruz Filipe nada tem a ver com as Leituras da IV Classe, da sua co-autoria. Devo dizer que desconheço a sua quota-parte nesse livro e, hoje, deve ser impossível fazer essa destrinça.

Do livro aprovado oficialmente, creio, desde 1931, que pretendia fazer de nós todos «um Gonçalo» tocado pelo «santo orgulho» da «santa Pátria»: rapaz pontual, bondoso, aplicado, cortês, respeitador, modesto, sem pretensões, aluno exemplar, – «Rapazes! Vamos a ver / se sabemos imitá-lo!… / se podemos proceder / em tudo como o Gonçalo.» – não guardo memória de um único texto dos seus autores.

Até a prosa dos escritores, seleccionados pelo seu valor literário, foi escolhida para satisfazer os objectivos do Regime, em termos educacionais. Apenas escapa «A balada da neve», de Augusto Gil, pela sua musicalidade e intenso lirismo.

Acabei desencantado ao reler, trinta anos depois, o meu livro da quarta classe. Ao invés, as impressões de Cruz Filipe, sobre o Funchal de 1935, despertaram-me para estes Passos, maquinados no ano velho e guardados para «o varrer dos armários».

Diário de Notícias, Revista, Funchal, 15 de Janeiro de 1995, p. 12

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Há 125 anos nasceu, na freguesia de Santa Luzia do concelho do Funchal, António Aurélio da Costa Ferreira, médico, antropólogo, professor e pedagogo de renome, com lugar de relevo na História da Educação em Portugal.

Filho de Francisco Joaquim da Costa Ferreira, oriundo da cidade do Porto, e de Teodolinda Augusta de Freitas Ferreira, natural de Machico, António Aurélio da Costa Ferreira nasceu a 18 de Janeiro de 1879, sendo baptizado na igreja paroquial de Santa Luzia a 17 do mês seguinte.

Concluiu a instrução primária em Viana do Castelo. Contudo, fez o curso liceal na cidade onde nasceu. Durante este período da sua vida, recebeu forte influência, quanto ao gosto pela leitura e escrita, do seu tio materno, João Joaquim de Freitas, distinto professor de Literatura e Língua Portuguesa no nosso Liceu e bibliotecário da Biblioteca Municipal do Funchal.

Em 1894, António Aurélio matriculou-se na Universidade de Coimbra para cursar Filosofia, tendo-se licenciado em 1899. No ano seguinte, inscreveu-se em Medicina, curso que terminou em 1905. Recebeu vários prémios nas duas faculdades. Como médico, estagiou em Paris, Bruxelas e Lisboa.

Durante a sua permanência em Coimbra, colaborou em diversas publicações periódicas, com trabalhos científicos ou artigos de intervenção cívica. Foi também nesta cidade que aderiu ao ideal republicano, do qual seria um militante activo e convicto.

Não se pode, todavia, compreender a actuação de Costa Ferreira enquanto cidadão, sem associar a sua formação maçónica à condição de republicano fervoroso.

Como vereador republicano na Câmara Municipal de Lisboa, de 1908 a 1911, defendeu várias medidas no âmbito da Educação, Cultura, Desporto Escolar e assistência médica e social às crianças desfavorecidas do concelho.

No âmbito da actividade política, é de salientar ainda a sua eleição como deputado em Agosto de 1910, por Setúbal, e em 1911, pelo círculo do Funchal. Exerceu também funções de ministro do Fomento, de Junho de 1912 a Janeiro de 1913. No entanto, esta passagem pelo governo corresponde à sua desilusão com a política activa. Afirmou mesmo: «Fui ministro. Foi esta a maior honra que alcancei, o maior sacrifício que fiz e o maior desgosto que até hoje experimentei. Hoje, em face do que para aí vai, não me contento já com não voltar a ser ministro; não quero ser político.»

Já também um pouco decepcionado com a actividade que desenvolvia, Costa Ferreira aceitou, em 1922, o convite de Brito Camacho para uma missão de estudos antropológicos em Moçambique. Partiu de Lisboa com destino ao Funchal, tendo daqui embarcado para Lourenço Marques. Veio, porém, a suicidar-se nesta cidade a 15 de Julho.

Em sua homenagem, a Câmara Municipal do Funchal atribuiu, em Setembro de 1922, o seu nome à Rua do Carmo. Todavia, passados alguns anos esta artéria citadina retomou a antiga designação.

Apesar de morrer com 43 anos de idade, António Aurélio da Costa Ferreira deixou-nos uma vastíssima obra em vários domínios do conhecimento, desde a literatura à antropologia e à pedagogia.

Como educador, desempenhou um papel importante na direcção da Casa Pia de Lisboa, na formação de professores, na reabilitação e integração de crianças com necessidades educativas especiais, na promoção da laicização do Ensino e na divulgação do movimento da «Escola Nova» em Portugal.

Nomeado para director da Casa Pia de Lisboa em Março de 1911, Costa Ferreira norteou a sua actuação dentro dos propósitos da «Escola Nova», concedendo plena liberdade às crianças e encaminhando-as para as artes e ofícios conforme as aptidões demonstradas. Incentivou igualmente as aulas de trabalhos manuais, música e desporto.

A propósito, registe-se o que escreveu no jornal O Tempo, de 25 de Março de 1911: «Não é só útil aquele ensino que visa a fornecer conhecimentos de imediata aplicação.» Pretendia, por conseguinte, «criar espírito científico, cultivar faculdades e aptidões, ensinar a observar, a experimentar, a raciocinar, fomentar o espírito crítico, criar olhos para verem, mãos para trabalharem, cérebros para pensarem, mas por forma que cérebros, olhos e mãos caminhem juntos e livremente.»

No âmbito da formação de professores, leccionou Pedologia, Higiene Geral e Higiene Escolar na Escola Normal de Lisboa, a partir de 1915. Nos diversos estudos que dedicou à psicopedagogia, com vista à formação de professores e educadores de crianças normais e deficientes, denotam-se influências muito fortes de Édouard Claparède (1873-1940), Alfred Binet (1857-1911), Ovide Decroly (1871-1932) e Maria Montessori (1870-1952). Como, de resto, não lhe são alheias as ideias de Kant (1724-1804) e Pestalozzi (1746-1827) sobre educação, designadamente na necessidade de desenvolver todas as capacidades do educando e na preparação que a escola deve dar para a intervenção do indivíduo num futuro melhor da humanidade.

Costa Ferreira entendia que o tempo do mestre-escola estava ultrapassado. Já não bastava ensinar a ler, escrever e contar. O futuro professor deveria, por isso, possuir conhecimentos sobre Pedologia, Higiene Escolar, Trabalhos Manuais e Ginástica. A individualização do ensino e a importância do desenvolvimento dos sentidos mereceram também a sua atenção.

Por outro lado, há que referir a sua dedicação às crianças com necessidades educativas especiais, principalmente na Casa Pia de Lisboa. Desenvolveu, assim, vários esforços conducentes à reabilitação, ensino e integração social dos, então, designados por «anormais pedagógicos», gagos e surdos-mudos. Para os «anormais pedagógicos», criou, em 1912, a Colónia de S. Bernardino, em Atouguia da Baleia, próximo de Peniche. No ano seguinte, dedicou-se ao curso de formação de professores para surdos-mudos. Em 1915, funda o Instituto Médico-Pedagógico, na freguesia de Santa Isabel. Este Instituto enquadra-se no projecto de desenvolvimento de uma pedagogia científica em Portugal, no âmbito do movimento da «Educação Nova», pela qual também pugnavam António Sérgio, Adolfo Lima, Álvaro Viana de Lemos, Joaquim Tomás e Faria de Vasconcelos, entre outros.

Em sua homenagem, a partir de 1929, o Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa recebeu a denominação de Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, seu fundador. Igualmente, o seu nome está associado ao Instituto de Inovação Educacional.

Nome porventura ignorado na sua terra natal, verdade é que este madeirense sobressai entre a plêiade de educadores republicanos que se empenharam na laicização do ensino e na divulgação da pedagogia científica e dos ideais da «Escola Nova». Não podia, pois, passar despercebido, nesta ilha, o 125.º aniversário do nascimento de António Aurélio da Costa Ferreira, o pedagogo que, no início do século XX, preconizou que nenhuma criança, por maiores dificuldades que apresente, poderá deixar de ter acesso à educação.

               

Diário de Notícias, Revista, Funchal, 18 de Janeiro de 2004

Cópias digitais de obras de António Aurélio da Costa Ferreira:

FERREIRA, António Aurélio da Costa – Algumas lições de psicologia e pedologia. Lisboa: Lumen, [1920].

http://purl.pt/6386

FERREIRA, António Aurélio da Costa – História natural da criança: duas lições. Lisboa: Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa, 1922.

http://www.sg.min-edu.pt/fotos/editor2/RDE/OR/FerreiraAAC_Hist%20natural/index.html#/1/

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