Desde o séc. XV, o Funchal tem sido captado pela escrita, ainda que nem sempre fosse a motivação literária a desencadear o registo. Intenção primeira poderia ser descrever simplesmente o que a mente percepcionava, passar ao papel impressões veiculadas pelos sentidos, na certeza antecipada da debilidade da memória.
Não são somente de forasteiros esses registos. Apesar da literatura de viagens assumir posição de relevo, neste domínio, porque quem vem de fora sempre tem mais tempo ou predisposição para observar e anotar, nem que seja em termos comparativos, verdade é que, na ilha, o registo também se foi fazendo.
Jerónimo Dias Leite, o primeiro cronista madeirense, por exemplo, escrevendo por volta de 1579, a pedido de Marcos Lopes, deixou-nos importantes referências sobre o povoamento do arquipélago e os feitos dos primeiros capitães no processo de formação da sociedade madeirense. Todavia, a sua obra só foi conhecida por meados do século XX, embora Gaspar Frutuoso a reproduzisse quase integralmente no Livro Segundo das Saudades da Terra. Na época não era plágio! Mas, diga-se em abono da verdade, o vigário da Ribeira Grande – Gaspar Frutuoso – reconheceu, por mais de uma vez, a colaboração de Dias Leite nas preciosas notícias sobre as ilhas da Madeira e Porto Santo
Dias Leite considerou a sua tarefa como carga digna dos ombros de Atlante, mas dela se desembaraçou com esmero e alguma prudência, como quando traçou o retrato do Conde Simão Gonçalves da Câmara, sendo este ainda vivo. Escreveu então Dias Leite:
«Pudera neste caso e capítulo, mais espraiar o estilo em seus louvores, mas como a perfeita glória dos homens se não pode dar remate, senão depois que lhe faltam as ocasiões de bem e mal fazer, que é quando tem acabado o curso dos trabalhos deste mundo, remeto o mais deste negócio ao que depois do seu falecimento o quiser louvar e fazer.» (Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da vida e feitos dos capitães da dita ilha, p. 99)
Eis a sensatez do cónego da nossa Sé, o primeiro cronista madeirense a falar da cidade, quando era «mui rica de açúcares e vinhos e os moradores prósperos com muitas alfaias e ricos enxovais».
Por outro lado, nas câmaras, nas paróquias, em algumas instituições civis e militares, nos arquivos de família, há um Funchal na memória escrita quase sempre associado a momentos excepcionais do quotidiano, que importa resgatar, e que, conjuntamente com os ensaios sobre representações literárias, agora editados, ajudar-nos-ão, por certo, a melhor conhecer a evolução histórica do lugar elevado a cidade, em 1508, para acolher a primeira diocese do Portugal de Além-Mar em 1514.
Ajudar-nos-ão, por certo, a melhor conhecer a nossa identidade, sobejamente proclamada, mas quase sempre pouco fundamentada por falta de preparação e rigor de análise, mesmo quando estão disponíveis estudos esclarecedores.
Funchal d’escrito reúne um conjunto de ensaios sobre representações literárias da cidade. O corpus de textos em análise decorre naturalmente da especialidade dos seus autores. Trataram de diferentes registos textuais – narrativa, crónica, relato de viagem, poesia. E a análise assentou na História, mas também na problemática da actualidade: «… à luz de problemáticas socioculturais da actualidade», sublinham os autores.
David Pinto Correia, na portada do livro, defende que os escritores e os artistas surpreendem mais profundamente «o todo-aura do espaço físico e social».
Provavelmente, assim será. A liberdade criativa conseguirá, sem dúvida, penetrar em domínios que os preceitos da ciência impedem ou inibem.
Mas, com certeza, esse «todo-aura», da cidade ou de outro qualquer espaço, será ainda mais profundamente surpreendido quando vários olhares se cruzarem, na interdisciplinaridade desejável e raras vezes alcançada.
Grande parte deste livro nasceu desse desejo, da necessidade de olhar o Funchal de diferentes perspectivas. Fazer uma História do Funchal com especialistas de várias áreas do saber. Tratava-se de um projecto para 2008, para as comemorações do Quinto Centenário. Infelizmente, esta iniciativa não se concretizou, mas textos então produzidos começam agora a vir a lume. Os seus autores dão conta disso em nota de pé de página, na Introdução. Fazemos votos de que outras colaborações, preparadas para o mesmo projecto, saiam dos ficheiros dos computadores e sejam editadas em breve.
Funchal d’escrito: ensaios sobre representações literárias da cidade dá particular relevo ao Funchal na narrativa literária, na crónica, na poesia e na literatura de viajantes franceses, italianos e de um castelhano. Acrescem ainda dois ensaios, de natureza mais especializada ou temática mais concentrada, da autoria de Leonor Martins Coelho e dedicados a obras de Irene Lucília Andrade, Ricardo França Jardim e José Viale Moutinho. Constituem os dois capítulos finais e que, ao contrário dos restantes, não se destinavam à História do Funchal.
Apesar de contemplarem três autores madeirenses, estes ensaios não destoam dos demais. De resto, Leonor Martins Coelho parte exactamente do mesmo princípio: o Funchal como «espaço complexo, lugar privilegiado para a deambulação, a divagação, os encontros e as desventuras.» Enfim, a cidade «como lugar de memória, de percursos e de errâncias, objecto de reflexão…»
Estes ensaios procuram responder a questões enunciadas pelos seus autores e que são partilhadas pelos que do Funchal têm ampla visão cultural:
- Como se tem construído ou reconstruído o Funchal na obra dos escritores? Visão realista ou estereótipo?
- Que perspectivas transmitem quanto ao espaço, à história e aos habitantes?
- Qual o papel do Funchal no texto literário?
- Que coordenadas norteiam a poética de representação?
- Como se concilia a cristalização da memória da cidade com a construção de um imaginário funchalense?
- Em que medida o testemunho do viajante denota uma relação com a cidade e a ilha? Será fiável a imagem transmitida? Idealizada ou objectiva? Em que medida os juízos de valor emitidos traduzem preconceitos de várias espécies, desde o grupo social do viajante até à sua nacionalidade?
A estas e outras questões, subjacentes aos ensaios publicados, procuram os seus autores responder através da inventariação e análise de dezenas de textos de autores madeirenses, na ilha residentes ou por aqui de passagem, pretendendo – e cito da Introdução – «dar conta do singular poder que o Funchal exerce sobre a visão, os sentidos, o estado de espírito, a memória e as experiências particulares dos autores e dos seus possíveis leitores, percorrendo os diferentes géneros literários convocados e as múltiplas cartografias virtuais desta Cidade atlântica vista e (d)escrita mas, todavia, sempre por completar e, assim, por reinventar.» (p. 9)
Para além da representação literária da cidade – objectivo primeiro do livro e, na verdade, quanto a mim, amplamente conseguido –, os ensaios de Funchal (d)escrito despertam-nos para múltiplas incursões em sítios e lugares da urbe, a partir da ficção narrativa, da poesia, dos testemunhos dos viajantes e da crónica, não somente para invocar ou lembrar o que já foi sentido e literariamente registado, mas também para nos animar e seduzir por novos encantos e afectos ou antigas memórias, numa reinvenção permanente de universos e vivências através da escrita.
(Palavras proferidas na apresentação deste livro, Universidade da Madeira, 14-06-2011)
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