Em 1907, a varíola alastrava na Madeira. No final do ano anterior, desembarcara no Funchal o comandante do navio italiano “Massília”, atacado com essa terrível doença. Logo foi internado no Seamen’s Hospital, um estabelecimento de saúde para oficiais e demais tripulantes da marinha mercante, fundado pela Casa Blandy, onde acabou por falecer.
Apesar de prescrito o regime de quarentena para o “Massília”, a sua tripulação não se coibia de desembarcar, tendo, por conseguinte, difundido o vírus entre a população funchalense. Esclareça-se que, na sua fase inicial, o vírus da varíola se transmite por via respiratória, e depois através de objectos de uso comum, contaminados a partir das lesões cutâneas.
No início de Fevereiro de 1907, começaram a surgir os primeiros casos de varíola entre a população madeirense. As autoridades do distrito promoveram campanhas de vacinação e revacinação e tentaram impedir os variolosos de saírem das suas residências. Mesmo com guardas da polícia e soldados à porta das casas dos contaminados, as normas de defesa sanitária eram frequentemente transgredidas.
Assim, o internamento dos variolosos impunha-se como o meio mais eficaz para barrar o contágio de uma doença, felizmente extinta desde os finais da década de setenta do século passado, que apresentava uma taxa de letalidade elevada, sobretudo quando hemorrágica, e que, nos meios mais pobres, provocava o maior número de vítimas.
Pensou-se, então, em recuperar o Lazareto e convertê-lo num hospital de isolamento de variolosos. Todavia, o Lazareto tinha péssima fama desde finais de 1905, quando a peste bubónica levou o Dr. Balbino Rego a adoptar medidas rigorosas de isolamento e tratamento, que suscitaram grande descontentamento popular, principalmente pela falta de comunicação entre os doentes e os seus parentes.
Na sua reunião de 28 de Fevereiro desse ano fatídico, a Junta de Higiene Distrital deliberou reparos urgentes nos edifícios do Lazareto e, na hipótese de ali estabelecer um hospital de isolamento, pretendia solicitar “os bons serviços de irmãs hospitaleiras, franciscanas ou de caridade”.
Entretanto, a epidemia assumia proporções alarmantes, os navios desviavam-se do porto do Funchal, a crise económica instalava-se e do Governo Central não vinham nem autorização nem verbas para se iniciar a recuperação do Lazareto, apesar das diligências do governador civil, da Câmara Municipal do Funchal e do deputado pela Madeira, capitão João Augusto Pereira.
É, neste contexto, que avulta a acção de Mary Jane Wilson e das suas discípulas em favor dos variolosos. Mary Wilson, portadora de habilitação em enfermagem e animada por um franciscanismo laborioso, vinha prestando assistência domiciliária aos doentes, apesar dos seus 66 anos de idade. Contudo, tinha consciência da necessidade e urgência de um hospital de isolamento. Conhecendo o poder da imprensa, e não recusando a sua utilização em nome do bem comum, a 8 de Abril dirigiu-se ao ‘Diário de Notícias’, para afirmar a sua disponibilidade em aceitar a cedência do Lazareto, no estado em que se encontrava, desde que o Governo se comprometesse a fornecer camas, medicamentos e alimentos necessários.
A proposta da Irmã Wilson foi, de imediato, transmitida ao Governo Central pelas autoridades do distrito funchalense. Logo, o ‘Diário de Notícias’ se prontificou a facultar-lhe o produto da subscrição pública já aberta nas suas colunas, com generosa adesão.
A 16 de Abril, chegou a tão esperada autorização de Lisboa para a abertura do Lazareto, garantindo a entrega do serviço interno à Irmã Wilson e o clínico aos médicos municipais, sob a direcção do delegado de saúde, Dr. Nuno Silvestre Teixeira.
O Lazareto recebeu os primeiros doentes a 2 de Maio de 1907. Para se suplantar a má memória deste lugar e se conseguir a adesão dos madeirenses, tomaram-se medidas de humanização dos serviços, como, por exemplo, o direito do doente poder conservar o seu médico assistente, de se fazer acompanhar de um familiar ou de entrar no hospital por persuasão e não contra a sua vontade ou dos seus familiares, salvo se pusesse em risco a saúde pública. Seria também publicado na imprensa e afixado no Comissariado de Polícia um boletim diário do movimento hospitalar. É de referir também a especial atenção que Mary Wilson dedicou às crianças, permitindo sempre o acompanhamento da mãe ou de outro familiar e não esquecendo a actividade lúdica e o entretenimento nos longos dias em que permaneciam no Lazareto. Através do ‘Diário de Notícias’, a Irmã Wilson solicitou brinquedos para as crianças internadas, sendo o seu apelo, de imediato, correspondido por algumas firmas comerciais e muitos particulares.
O isolamento, o tratamento médico administrado pelos Drs. José Joaquim de Freitas, Nuno Silvestre Teixeira e Carlos Leite Monteiro e a abnegada assistência da Irmã Wilson e das suas companheiras, bem como as campanhas de vacinação e de revacinação e a desinfecção dos domicílios produziram, a curto prazo, resultados satisfatórios no combate à varíola. Na verdade, por meados de Agosto, esta doença já não constituía ameaça, apesar de ter feito cerca de quatro centenas de vítimas.
Se é certo que a intervenção dos médicos do Funchal se revelou imprescindível na erradicação da varíola, não é menos justo afirmar que a determinação, a dedicação, a capacidade de trabalho (inclusivamente com pessoas que não partilhavam das suas ideias e convicções religiosas, algumas das quais conotadas com a Maçonaria) e de mobilização de Mary Wilson, bem como a confiança que nela depositaram os madeirenses constituíram elementos decisivos no combate à terrível doença.
O Governo distinguiu o mérito da fundadora da Congregação das Franciscanas de N.ª Sr.ª das Vitórias com o grau de cavaleiro da Ordem de Torre e Espada, atribuído por Carta Régia de 4 de Julho de 1907, e o povo madeirense prestou-lhe sincera homenagem no Lazareto, a 27 de Outubro do mesmo ano, manifestando, assim, reconhecimento e gratidão pela sua valorosa obra em favor dos doentes infectados com a varíola.
Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 2007
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